quarta-feira, 11 de junho de 2014

O QUE É QUE HOUVE? O QUE É QUE HÁ?

Quem se lembra dessa música, de Guarabira e Rodrix?

"Com o olhar de quem chorou
Sentou-se a mesa dos seus pais
Ninguém sequer lhe perguntou
O que é que houve?
O que é que há?...”

Pois bem, foi essa a pergunta que me veio à cabeça quando reli minha última publicação. Parece que faltou uma explicação: afinal o que é que houve? O que é que há, que me sinto tão solitária e sem ambiente em meu ambiente? A resposta, os jornais e revistas oferecem todo dia. E não é uma resposta, uma situação, são muitas as razões para o desencanto:

- Neste ano, até 06 de maio, 20 pessoas, muitas completamente inocentes, foram mortas em episódios de linchamentos públicos, arrastadas, torturadas a chutes e pauladas, por alguma horda alucinada, composta por pessoas comuns. Essas 20 mortes são o resultado mais chocante de 37 episódios registrados de justiçamentos públicos. Vítimas e algozes são, na maioria das vezes, pobres.


- Um sem número de ônibus vem sendo depredado a cada greve, a cada manifestação ou em cada protesto. Fica até difícil quantificar. Na manhã de 13 de maio, 75 ônibus foram depredados por grevistas cariocas, o mesmo havia acontecido com outros 320 ônibus no dia 08; no dia 16, passageiros revoltados com uma greve de motoristas, em Goiânia, depredaram 27 ônibus; 35 ônibus depredados em Maceió, 25 em Florianópolis, 135 em São Paulo e a lista não tem fim. Há no ar um prazer em depredar.


- Durante greve de policiais em Abreu e Lima, região metropolitana do Recife - PE, no dia do feriado da emancipação do município, uma multidão saqueou mais de 100 lojas, supermercados, caminhões de bebidas e dos correios. Nos dias seguintes, quando a polícia divulgou que tinha imagens dos episódios, muitos “arrependidos” devolveram, ou deixaram nas ruas, eletrodomésticos furtados. O mesmo aconteceu em Jaboatão dos Guararapes e Moreno. Ao todo, 234 pessoas foram detidas em flagrante. Saques de cargas de caminhões acidentados ocorrem todo dia. Cerveja, micro-ondas, sorvete, alumínio, farelo, cigarros, biscoitos, tudo se saqueia, aproveitando a oportunidade.


- Grevistas e manifestantes adotaram o hábito de obstruir o trânsito impedindo a livre circulação dos cidadãos que se dirigem ao trabalho, sobrepondo o seu direito de protestar ao direito de ir e vir de todos. Tudo é motivo para queimar pneus em rodovias e avenidas. Em Açailândia - MA em protesto por constantes atropelamentos, em Maranguape - CE por falta de água, em Estrutural - DF por melhorias na urbanização da região, em Salvador - BA contra demolição de imóveis, em Ponta Grossa – PR para reivindicar construção de trincheira rodoviária.


- No trânsito, parafraseando Caetano Veloso, somos uns boçais. Digite “infrações de trânsito” no Google e vai encontrar notícias do tipo 4.289 infrações em Juiz de Fora - MG em 4 meses, em Cascavel - PR foram mais de 177.000 em 2013 e em Teresina foram registradas 1.311 infrações só em maio último. Sem contar a descortesia, a agressividade e o egoísmo com que se comporta grande parte dos motoristas nos engarrafamentos, cruzamentos e estacionamentos. Basta dirigir por uma rodovia para ficar com medo dos semelhantes.

O que há é tudo isso e mais uma infinidade de espertezas, omissões e ilegalidades, praticadas sem o menor constrangimento pelos mais comuns mortais, com uma naturalidade de assustar.

O que há é que todas essas atitudes funestas são praticadas por pessoas comuns desse povo. Um dia ou outro a gente acaba descobrindo que convive com algum ou alguns sonegadores, corruptos ou corruptores, aproveitadores, espertalhões e sabichões. Espantados, percebemos que são, em atacado, o espelho em que se miram e os degraus pelos quais ascendem os políticos corruptos e indecentes que sistematicamente nós, o povo, elegemos para nos representar.

Com o olhar de quem chorou
Sento-me a tua mesa
E espero que não me perguntes
O que é que houve?
O que é que há?...


O que houve podemos até discutir, mas o que há já está dito. 

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Nem Pasárgada, nem Maracangalha

Deixamos de ser uma nação para sermos um povo. Parece a mesma coisa, mas não é. A diferença entre Povo e Nação é sutil, mas muito significativa. A Nação é o Povo que se sente ligado pelo desejo de viver junto, que vê no outro a complementaridade de sua cidadania, é um grupo que se sente distinto de qualquer outro povo, com interesses e objetivos próprios, é um povo que compartilha a sensação e o desejo de pertencer ao seu grupo.

Quem ainda se sente pertencente à Nação Brasileira? Eu não me sinto. Faço parte de um povo, mas não de uma nação que, deseducada, embrutecida, carente e aética acabou se apartando da solidariedade, da gentileza, das virtudes morais e do bom senso. E isso não é uma nação. É uma sociedade, um povo sem um único sentimento sequer que una a todos.

Nos últimos 10 anos a sociedade brasileira passou por muitas transformações. As pessoas mais carentes tiveram suas vidas melhoradas, especialmente com a instituição de programas como o Fome Zero, Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Mais Médicos, Vale Cultura, etc. Melhorou, mas nada se resolveu. Piorou significativamente a qualidade da educação e das escolas, decaiu o acesso aos meios de saúde e a qualidade dos atendimentos médicos, tornou-se vergonhosa a situação da segurança pública, com cidadãos cada vez mais acuados diante da violência generalizada.

A distribuição de benesses deu aos mais carentes a sensação de que tudo lhes é devido, que o lucro das empresas deve ser destinado a eles, que a propriedade privada é um mal, que a iniciativa privada é a grande usurpadora de seus direitos, etc. Sob o ponto de vista de quem ganhou um apartamento e tem uma ajuda mensal para comprar alimentos e pagar a TV a cabo, tudo sob os auspícios do governo, deve mesmo parecer que capitalismo, meritocracia e jornada de trabalho são marcas de escravidão.

Por outro lado ainda não nos livramos da assombração dos governos militares e suas instituições dedicadas à tortura e morte dos opositores, a ponto de confundirmos a polícia com essas instituições e assim vincular repressão policial a repressão política. Hoje quando a polícia prende vândalos e reprime seus atos, que em geral simulam protestos sociais, sempre há um grupo de ressentidos acusando-a de repressora política.

Nem de longe, por outro lado, apoio o discurso fácil dos que dizem ter saudades da ditadura militar. Esses não têm memória ou são alienados e esquecem que só podem expressar suas opiniões porque a ditadura acabou. Esquecem que o que se vive hoje é consequência inegável do passado. São crias da ditadura os senhores Sarney, Paulo Maluf e Antônio Carlos Magalhães. Sem falar nas grandes empreiteiras que cresceram fazendo as grandes obras dos governos militares, como a Ponte Rio-Niterói, a Hidrelétrica de Itaipú e a natimorta Transamazônica e que agora, só agora, são chamadas de corruptas.

Ainda há muito mais a deteriorar nosso sentimento de nação. Há a corrupção, a politização da administração pública, há a impunidade, a ineficiência dos serviços públicos, há o cinismo, o descaso, o nepotismo, o coronelismo, o peculato, etc, etc, etc. Tudo isso, imoralidades, maus exemplos e crimes, praticados por homens e mulheres investidos de poder pelo povo que, ao mesmo tempo, os consagrou pelo voto e é sua cândida vítima.

Meu olhar para o presente não é político, é social. Procuro motivos para me sentir parte de uma nação, da nação que se uniu para exigir eleições democráticas e para derrubar uma inflação galopante. Mas olho em volta, vejo as notícias nos jornais e na TV, e me sinto cada vez mais deslocada. É cada vez maior o número de pessoas e grupos cujo comportamento só me aparta delas. Pela primeira vez em minha vida penso que viver longe pode ser bem melhor do que passar pelos sobressaltos, aborrecimentos e medos que o brasileiro médio enfrenta todo dia.

O que quero é apenas dizer que não quero ir pra Pasárgada nem pra Maracangalha. Ao contrário de Drummond e de Caymi, não sei poetar. Tenho os pés fincados na realidade e careço de minha Nação. É isso.



domingo, 30 de março de 2014

Pedras de Paraty - Uma Fábula (?)

Num caminho feito de pedras, há duas maneiras possíveis de se andar, e eu as experimentei andando pelas ruas do centro histórico de Paraty.

No primeiro dia em Paraty, em suas ruas de calçamento rústico, andei quase todo tempo olhando para o chão, prestando atenção nas pedras para não tropeçar, não cair, não me machucar. A cada passo eu escolhia em que pedra pisaria e mesmo com todo esse cuidado acontecia de pisar em falso. Terminei o dia incólume e deveras cansada, não apenas pelo que havia andado, mas também pela atenção concentrada nas pedras do calçamento.

No segundo dia as ruas estavam mais movimentadas e era preciso cuidado para não esbarrar nas outras pessoas, precisei levantar o olhar com mais frequência, passei a perceber as vitrines das lojas e a admirar as fachadas centenárias, com sua simplicidade persistente, comecei a olhar para dentro de toda porta aberta e a descobrir pátios internos ocultos dos olhares distraídos. A festa de cores e imagens ao redor era tão variada e interessante que me esqueci dos meus pés e deixei de olhar para o chão.

Tropecei? Tropecei, sim. Quase caí. Se não estivesse olhando pra frente, não teria encontrado onde me apoiar e teria caído sim. Corri algum risco, mas muito menor do que aquele que, sem experimentar correr, eu havia suposto que corria.

Ao tirar os olhos do chão, das pedras, eu simplesmente tratei com naturalidade as dificuldades que elas representavam e então elas deixaram de me incomodar.


No último dia na cidade, já andando pelas ruas como se estivesse sobre um tapete, compreendi que aquela tinha sido uma viagem de lazer e de aprendizado. Percebi que daquelas pedras eu traria mais do que fotografias e lembranças. Aprendi que concentrar-se apenas nas pedras do caminho é dar a elas uma importância maior que às belezas ao redor; que tampouco se deve ignorá-las porque ainda assim elas estarão lá, riscos e inconveniências. Aprendi enfim que é mais seguro e prazeroso caminhar olhando à frente, com tranquilidade e confiança na própria capacidade de se sustentar e de avaliar quando e como lançar mão de um apoio. Assim, as pedras do caminho vão compor a paisagem e valorizar o passeio.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

MORTE E VIDA

Olhando para o céu na noite passada, por um segundo me senti olhando para o negativo de uma foto do amanhecer. A lua cheia, brilhante como um sol, nascia no mar e prateava um tapete de nuvens brancas, algodoadas como espumas de um mar agitado. Só não dava para confundir porque o mar da lua estava acima dela...


Sentei-me na varanda para apreciar aquele espetáculo, num desses momentos em que a solidão é boa companheira e garante a tranquilidade para a introspecção. Então percebi que quando eu não estiver mais aqui sentirei falta de ver aquilo. Vou lamentar não sentir o vento forte acariciando meu rosto e atravessando minha mão por entre meus dedos. Terei saudades do cheiro do mar, dos perfumes das flores, da manga e da jaca. Não ouvirei a cantiga das ondas nem a algazarra das andorinhas do mar perseguindo os barcos pesqueiros. Chorei.

Inevitável foi perceber a dimensão da influência que a natureza exerce sobre a mente humana. Desapegar-se das coisas e das pessoas é, por mais que pareça difícil, mais fácil que abrir mão da própria relação com a natureza. O grau de interação é tal que, sendo a vida humana parte dessa natureza, desapegar-se da relação com ela é como abrir mão da própria vida. Talvez por isso tenha sido invadida por uma tristeza tão grande.

O apego (ou desapego) aos objetos, ao status social, aos bens de valor e às coisas em geral depende fundamentalmente dos valores que adquirimos e adotamos ao longo da vida e pode ser revertido com a reversão da escala de importância que damos a esses valores. O apego às pessoas é alimentado pela relação sentimental que temos com elas; amor, ódio, desejo, repulsa, afeto, raiva, admiração, inveja, tudo isso liga as pessoas e para desapegar-se delas é preciso liberar-se da necessidade desses sentimentos (apenas da necessidade, não necessariamente deles).

Agora, libertar-se da natureza, da relação com a natureza, dos sentidos e das sensações que tiramos deles, o que é, senão morrer?

Vivemos uma vida em geral inconsciente do nosso estado natural. Acordamos, passamos o dia e dormimos pensando no que faremos a seguir, no que fizemos, no que queremos, pensamos em nossos desejos, afazeres e frustrações, pensamos nos outros, mas raramente olhamos para o céu, os jardins e as montanhas, raras vezes respiramos fundo para sentir o ar preenchendo-nos e poucas vezes em toda vida ao sentar na areia da praia ou na grama do parque damo-nos conta de que viver é relacionar-se com a natureza, essa natureza que nos compõe e nos define.

Que sentido há em viver sem sentir a vida? Sim, porque a vida não são os outros nem os bens que se acumula. Viver é relacionar-se com a natureza. Viver bem ou mal, feliz ou infeliz, depende do modo como nos relacionamos com as pessoas e a cultura ao nosso redor, mas antes de viver bem ou mal é preciso apenas viver.

E para ter a dimensão do que seja viver é necessária também alguma percepção do que significa morrer. Afinal, olhando o céu, a lua, o mar e as nuvens, percebi o que é morrer.


É... vou lá fora tomar um ar. Vou viver.

sábado, 4 de janeiro de 2014

A CANECA, O ESPELHO E O ACASO


Tenho dificuldade de acreditar em acasos. Se temos encontrado explicações para tantos fenômenos, em todas as áreas do conhecimento, por que deveria entender como inexplicável qualquer evento em minha vida? Sendo possível aceitar uma explicação para os nunca vistos buracos negros, se podemos estabelecer uma lógica para os movimentos caóticos e se aceitamos que ínfimas partículas de matéria se confundem com energia, acho que seria muita pretensão achar que há algo de misterioso em minha existência. Tenho como certo que os mistérios em minha vida e em seus acontecimentos são na verdade o resultado de minha incapacidade de compreendê-los.

Assim, estou sempre buscando alguma explicação para as não obviedades de meus dias. Quase sempre encontro alguma e se ela parece apenas um artifício para acomodar as coisas, lembro que há tanta incerteza na explicação quanto na falta dela; se posso aceitar que não haja explicação, também posso aceitar que haja alguma e que talvez seja a que tenho.

É por isso que sempre, diante do que fuja ao habitual ou esperado, me pergunto o que tenho a apreender, que lição ou explicação há para a quebra da rotina. A resposta nunca é o acaso. Para tudo cabe uma explicação, não apenas para fazer parecer que a vida corre num fluxo de normalidade, mas e, sobretudo, para fazer valer tudo o que se vive, absolutamente tudo, até a substituição de uma caneca por um espelho, por mais ilógico que isso possa parecer, como me aconteceu recentemente:

Do que restava da casa de meus pais, o que eu mais queria era aquela caneca que minha memória, certa ou errada, dizia que eu havia ganhado, ainda bem pequena, de minha madrinha de batismo. Como mãe tinha o hábito de guardar presentes, eu nunca havia usado a tal caneca e, mesmo quando saí da casa de meus pais, a caneca ali permaneceu, no armário, entre outras canecas e louças da família.

Era uma caneca azul, com um círculo branco em que estava estampada a figura de uma criança correndo, brincando, alegre, que eu gostava muito e que nunca levei comigo em respeito ao cuidado que mãe tinha com aqueles objetos. Agora que ela não está mais entre nós e que havia necessidade de dar um destino ao que havia ficado na casa, lá fui eu, certa de que afinal teria comigo aquela caneca que habitava minhas fantasias desde a infância. Não a encontrei. Fiquei frustrada. Perguntei aos meus irmãos se alguém sabia dela e todos negaram dizendo inclusive que não a conheciam.

Que a caneca existia não tenho a menor dúvida, que não mais a verei parece-me bastante provável e sequer imagino o que teria que fazer para tentar reavê-la. Tentar, porque pode ter sido quebrada e jogada no lixo há tempos. Restou um vazio, ficou uma falta que eu não saberia explicar.

Ocorre que, entre os objetos que não foram reivindicados por ninguém, havia um espelho oval com moldura de madeira muito simples, mas com o espelhamento intacto e que, talvez sensibilizada com minha frustração por não encontrar a caneca azul, minha irmã me ofereceu. Contrariando minha intenção inicial de não ficar com nada além da caneca, resolvi trazê-lo para casa. Ele também tem um significado para mim que ajudou nessa decisão. Ele está presente na minha mais remota lembrança de infância: eu e minha irmã mais nova pulando alegres sobre a cama de nossos pais para alcançarmos nossas imagens refletidas naquele espelho; eu acenava para a imagem como se saudasse alguém que não fosse eu mesma.

Agora aqui me olhando nesse espelho, uns 50 anos depois de me saudar efusivamente através dele, tenho uma explicação bem melhor que o acaso para ele ter tomado o lugar de uma caneca. É que o sonho infantil de brincar correndo livre e alegre não pode estar preso a uma imagem estampada numa caneca. Aquela imagem não é de minha liberdade nem de minha alegria. Essas eu devo procurar no espelho, como fazia ainda pequenina e as encontrava. É esta pessoa refletida nesse espelho que tem a chave do meu contentamento.

Onde está, então, o acaso?

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

A CASA


São dois pavimentos. No térreo tem um jardim, varanda, salas de estar e de jantar, lavabo, cozinha, área, garagem e dependências. No segundo pavimento estão os quartos, varandas, banheiro e um hall no centro dos cômodos aonde chega a escada que liga os dois pavimentos. A escada tem três lances sendo dois com sete degraus e o último com 6. Sei esses números porque os contei uma enorme quantidade de vezes. Fazia a contagem para distrair o medo de, subindo ou descendo no escuro, ser alcançada por uma força que, saída das profundezas, me puxaria e me levaria com ela. Nos dois patamares que separam os lances e nos quais se faz uma inversão do sentido da subida ou descida, ao fazer o giro de 180° eu quase sentia essa mão me tocar; nos dias de mais coragem era capaz de olhar para trás para certificar-me de sua presença ou para com alívio descobrir que nada havia ali até que eu fizesse o caminho inverso.

Essa casa tem muitas histórias. Era nela que primos se encontravam nos fins de ano e exploravam os quartos das tias à procura de novos jogos eletrônicos, novos discos e cd’s, lenços, colares, revistas e tudo mais que tivesse jeito de novidade; quem pediu na porta dessa casa um pão ou um agasalho jamais partiu de mãos vazias; ali crianças ficaram adultas e cuidaram de seus pais como se as crianças fossem eles; nela raramente se faziam festas e todo dia alguma oração era feita; em seu jardim havia um pé de murta-de-cheiro que floria todo ano perfumando os quartos e um pé de cacto, tipo figo da índia, em que um dos filhos gravava as datas de suas visitas à casa. Em mais de 45 anos essa casa acumulou muitas histórias. São histórias de minha família, de meus pais, irmãos e sobrinhos. São, portanto, histórias também minhas.

Agora essa casa foi vendida. Outra família se instalará ali e novas histórias serão vividas. De minha família restam ainda alguns móveis, louças, roupas e alguns outros objetos como quadros e panelas que devemos retirar de lá. Essa tarefa, eu, um irmão e uma irmã, cumpriremos no próximo fim de semana. Cabe-nos guardar o que possa interessar-nos ou aos demais irmãos, separar o que deva ser doado e jogar fora o que não sirva mais a ninguém.

Não pretendo trazer para mim nada além de uma caneca de louça da qual me recordo e que minha memória me diz que seria minha. Pode ser só uma fantasia de criança, mas acho que ela é um presente que eu teria recebido de minha madrinha. É uma caneca azul com um círculo branco e nesse círculo há uma imagem de uma criança correndo, brincando feliz. Lembro-me de muitas vezes ter admirado aquela cena e de ter imaginado ser eu aquela criança.

Mas não há problemas sobre o que trazer comigo. O mais provável é que fique difícil dar um destino para aquilo que era estimado por nossos pais e que não tenham para nós uma utilidade ou um significado como tem a caneca azul. Retratos antigos, recortes de revistas e de jornais, santinhos com dedicatórias, medalhas e terços que mãe guardava com todo cuidado estarão lá, a nossa espera. Canivetes, cintos, canetas, gaiolas, aparelhos de barbear e as ferramentas que pai usava também estarão lá e provavelmente não serão requisitados por ninguém. Para essas coisas está reservado um destino que resulta de um valor que mãe e pai nos ensinaram: o respeito ao outro. Essas coisas terão um destino que eu ainda não sei qual será porque depende em parte de minha vontade e em parte bem maior do que queiram meus irmãos.  Respeitando-nos encontraremos as soluções mais adequadas.

Para cada um dos filhos e para cada um dos netos cada objeto terá um significado específico ou nenhum significado. De cada um haverá um olhar diferente sobre esses objetos, diferentes sentimentos serão despertados por eles. E sentimentos devem ser respeitados.


Para mim, há algum tempo, tudo o que resta daquela casa e de seus objetos cabe no campo das lembranças. Tenho poucas saudades, algumas tristezas e nenhum desejo de posse. Sei que aquela família que ali viveu não deixa de existir mesmo que aquela casa seja demolida e seus objetos sejam incinerados. Hoje acredito que a minha verdadeira casa, o meu verdadeiro abrigo, é invisível e intocável. Sei que minha casa é o coração afetuoso de quem amo. Ali posso descansar, sonhar e alegrar-me. Na escada da minha casa, nos lances à frente de cada patamar, há uma força que me alça para o patamar seguinte; nos dias de menos coragem elevo meus olhos à frente duvidosa de sua presença. Com alívio, descubro que o afeto está e ficará ali até mesmo quando eu fizer o caminho inverso.

domingo, 10 de novembro de 2013

ADEUS, MESTRE ÁLVARO


Vou logo esclarecendo: nem de longe esse título faz referência ao filme Goodbye, Mr. Chips. O Mestre, neste caso é uma montanha, um maciço granítico. Com 800m de altura é uma das maiores elevações da costa brasileira, fica no litoral capixaba, na região da Grande Vitória e tem uma das nossas últimas áreas de mata atlântica de altitude. É de uma imponência encantadora e destaca-se na paisagem da cidade. D. Pedro II, em passagem por aqui em 1860, registrou seu contorno nas suas notas de viagem.

Mas, se não vou embora desta cidade e nem a montanha o fará, por que a despedida?

Despeço-me da visão que diariamente tenho, de minha varanda, dessa majestosa montanha. Diariamente ou quase porque nem sempre consigo divisar o Mestre Álvaro. Há dias em que ele se deixa envolver pelas nuvens e avisa à cidade que vai chover. Um edifício, mais que os 22 km que nos distanciam, irá nos separar. Sua construção já foi iniciada. É verdade que há outros obstáculos entre nós, mas são outras montanhas menores sobre as quais está o contorno do Mestre Álvaro, como que a abraça-las.

Aprendi a observar essa montanha quando construía algumas casas e edifícios a uns 10 km dela. Se ia programar algum serviço de urbanização ou qualquer outro a céu aberto para o dia seguinte, antes dava uma olhada para o Mestre Álvaro. Se estivesse encoberto, haveria chuvas e isso, em 90% dos casos, era certo. Três anos atrás, quando me mudei para o atual apartamento, passei a observa-lo todo dia logo cedo, quando acordo. Sua silhueta emoldurando a visão da cidade foi uma referência por todo esse tempo. E não deixará de ser, apenas deixará de ser minha para ser daqueles que habitarem o novo edifício. Assim como um dia “roubei” a vista de quem mora no edifício atrás do meu, agora essa vista será “roubada” de mim.

E eis aqui uma lição: não possuímos nada, nada é nosso. De algum modo tudo o que achamos que temos pode ser-nos tirado, ou quase tudo. Apenas a mente ou a alma, conforme nossa crença, e o que aprendemos nesta vida nos pertencem. Tudo o mais podemos perder. Podemos perder nossas posses, dinheiro e roupas; perdemos amigos, inimigos e parentes; nossos sentidos, memória e sensações podem faltar-nos e por fim nossos corpos serão de nós apartados. 

Assim, a falta da visão do Mestre Álvaro é apenas uma pequena perda e uma bela oportunidade de transferir um privilégio a quem ainda não teve a oportunidade de experimentá-lo. Toda manhã, quando olhar para aquele edifício que agora apenas se insinua na paisagem, hei de desejar que, ao mesmo tempo, haja alguém de costas para mim e de frente para a montanha a admira-la.


Adeus, Mestre Álvaro. Sequer estou deixando sua vista para outros. Você e sua imagem nunca me pertenceram.